Nação Palestrina.
Por Rodrigo Barneschi Barneschi medium
Notas sobre códigos torcedores e intolerância cromática.
Imagine um desfiladeiro. De um lado, temos a arquibancada, seus frequentadores e seus códigos bem particulares. Do outro lado, desconectada do que se passa no concreto de um estádio, a imprensa esportiva.
De um lado, torce-se sob sol e chuva — ao menos antes da pandemia. Do outro, há quem distorça no conforto proporcionado por um bom aparelho de ar condicionado — e isto já acontecia antes mesmo dos tempos de exceção. Os dois lados parecem compartilhar o mesmo ambiente, mas raros são os jornalistas que se aventuram a atravessar a ponte entre os dois lados do desfiladeiro.
Não é de hoje — e não é só no Brasil — que se pode apontar como conflituosa a relação entre mídia esportiva e aficionados. Mas os 15 meses de portões fechados acentuaram as divergências para além do sustentável: sem poder ir a estádios, o torcedor perdeu acesso direto ao seu objeto de adoração e agora é obrigado a aturar um intermediário entre ele e o campo de jogo. E o intermediário, via de regra, faz pouco caso do torcedor e agora fala para ainda mais gente: aos espectadores de sempre juntaram-se os órfãos da arquibancada.
Arquibancada, um mundo desconhecido
Os jornalistas esportivos conhecedores (e defensores) da arquibancada são a minoria, se enxergam como tal e sabem reconhecer as falhas de seus companheiros. Ocorre que a imensa maioria dos profissionais conhece bem o que se passa dentro das quatro linhas, mas ignora (e até despreza) o que move os sentimentos e as ações de torcedores, sejam eles organizados ou não. E assim é, em grande medida, por preguiça ou por presunção.
Julgando-se protegidos pelo escudo invisível da objetividade jornalística, tais profissionais creem-se imunes aos arroubos apaixonados de quem se entrega a uma causa e se colocam em um panteão de imparcialidade, como se dotados do discernimento requerido para pairar acima dos sentimentos inerentes ao futebol. Pior: além de não entenderem, ousam menosprezar os elementos constituintes da cultura torcedora.
Vou utilizar trechos de dois livros que contribuem para esse debate. Ambos foram escritos a partir de arquibancadas gaúchas (um autor é gremista e o outro, colorado) e têm o mérito de colocar em evidência a visão do torcedor sobre o papel da mídia no futebol.
Começo com Tiago Magalhães Ribeiro, autor de “Gremismo Crônico”:
“Depois, apareceu uma bancada e os analistas de plantão se dispuseram, magnanimamente, a explicar aos incautos e ignorantes, como eu, o que tinha acontecido. (…) Ao subjugarem suas paixões e analisarem friamente o jogo, os cronistas esportivos atestam sua superioridade, o que lhes autoriza a adotar o tom doutoral, a dar um pito nos torcedores, sempre uma turba descontrolada, necessitando das explicações e ponderações dos analistas para apaziguarem, com a força e a luz da razão, suas paixões desfiguradoras da objetividade real do futebol. (…) Não sei quanto a outro tipo de pessoa, mas o meu tipo de pessoa não lida bem com isso: eu não quero que um carinha de gel no cabelo e camisa polo me explique por que meu time perdeu”.
Agora, passo a bola para Douglas Ceconello, com seu “História universal da angústia”:
“A nova velha onda da crônica esportiva é vilipendiar o torcedor. Em tempos de futebol lacaio, asséptico e cheio de nutricionistas, a paixão não tem mais lugar, dizem. Os fatos não deveriam ser abordados de forma passional, mas sob a fria lâmpada do esclarecimento. Pregam uma espécie de positivismo futebolístico. Neste novo panorama sócio-boleiro, os uruguaios e os jogadores que mostram amor incondicional ao clube, por exemplo, seriam causadores de disfunções na sociedade, os indesejáveis, os párias. A marginália desprezível que mantêm valores ultrapassados em uma época na qual se fala em multas rescisórias e cláusulas contratuais”.
Cada qual a seu modo, Ceconello e Ribeiro expõem a tendência, mais flagrante em comentaristas televisivos, de questionar manifestações torcedoras. O colorado aponta o quanto se procura associar “valores ultrapassados” aos frequentadores da arquibancada, quase como se certa modernização comportamental fosse necessária — ao que eu pergunto: para quem? e por quê? O tricolor, por outro lado, ressalta a abordagem professoral de quem está sempre pronto a “dar um pito nos torcedores”.
A arquibancada é quase sempre ignorada na cobertura midiática e mesmo durante as transmissões ao vivo (essencialmente por falta de conhecimento e repertório). Quando aparece, notadamente em ocasiões controversas, é para que comentaristas se posicionem como bedéis dispostos a julgar se determinado tipo de protesto é aceitável e quais são os comportamentos que devem ser rechaçados. São sommeliers de manifestações torcedoras, empenhados em castrar o futebol de qualquer resquício de emoção.
Ao abnegado que defende as cores de seu time, caberiam, nesse modelo estritamente racional, os deveres pecuniários (pagar ingressos caros, comprar as novas coleções de uniformes a preços inflacionados e assinar o pacote de TV a cabo que dê acesso a dezenas de debates televisivos que se alternam em looping eterno) e nada além disso. E que se cuide o fanático que ousar expor uma opinião contaminada por sentimentos bárbaros.
Códigos da arquibancada
Eu já escrevi outras vezes e insisto:
“A arquibancada tem seus códigos. Eles devem ser respeitados”.
Chega então o dia em que um jogador veste uma chuteira de cor proibida — a exemplo do “Não grita gol antes, porra!”, isso não está escrito em lugar algum, mas é sabido e respeitado há décadas por quem vive essa realidade. A reação da torcida (ainda que por intermédio das redes sociais) é tão imediata quanto contundente. A coisa se resolve entre clube, atleta e a massa (que é, afinal, quem paga o salário do jogador), mas há quem se ponha a questionar a demonstração clubista — ora, vejam vocês, o torcedor está agindo como… torcedor!
Há, em muitas dessas críticas, o tão incômodo tom professoral e de pretensa superioridade em relação à “turba descontrolada” e à “marginália desprezível” que precisam ser tuteladas, mas há também aquelas que revelam o mais puro desconhecimento de causa. Não sei o que é pior.
Se estivéssemos vivendo tempos normais, eu recomendaria aos jornalistas avessos ao contato com a massa que tomassem vergonha na cara e fizessem algumas incursões a arquibancadas diversas, às imediações de estádios, a uma tribuna visitante cercada por grades. Seria de enorme valia para a compreensão da alma torcedora e mesmo de certas idiossincrasias.
Em não sendo possível uma experiência visceral entre os selvagens que antes ocupavam nossos estádios, os nobres cronistas podem se aventurar em pesquisas superficiais na internet para conhecer outros exemplos pelo mundo de intolerância cromática — e, acreditem, os países civilizados tão venerados por alguns têm rivalidades ainda mais exacerbadas do que as nossas.
O futebol, meus caros, acontece quando um torcedor se agarra a um alambrado enferrujado de uma cancha decadente e não quando um comentarista pensa ser capaz de assistir a três jogos ao mesmo tempo, em monitores distintos, para, na sequência, tecer meia dúzia de comentários vazios.